Ela tinha os olhinhos miúdos e um espanador de penas na mão, que ela passava lentamente por toda a extensão do seu gigantesco e velho guarda-roupa. No pequeno espelho colocado do lado de dentro de uma das portas do mesmo, uma senhora de setenta e poucos anos, vestida em um vestido bordado por pequenas e delicadas borboletas, óculos de meia-lua e olhos cansados observava sua própria imagem. Seus olhos foram da imagem no espelho para as gavetas. Ela puxou a segunda e começou a revirar as caixas de sapato que guardavam fotografias velhas, algumas roupinhas de bebê que pertencera aos seus três filhos, cartas que trocara com seu falecido marido quando ainda namoravam... Lembranças. Cheia de uma nostalgia que esmagava seu velho coração, ela empurrou a gaveta e estava prestes a remexer na terceira, quando percebeu um envelope lacrado jogado no chão. Provavelmente estava no meio de todas aquelas coisas que remexera segundos atrás. Seus dedos finos agarraram-no e, surpresa, ela percebeu que ele ainda estava fechado. Rasgou o papel envelhecido pelo tempo e, de dentro, puxou um papel de carta azul dobrado em duas partes.
Querida Lucy,
Abra seus olhos, aperte meus dedos e encare através das cortinas grossas que cobrem a janela do seu quarto. Você vê? Há luz do lado de fora da sua janela! E mesmo que não houvesse, acho que você já deve saber que eu estaria ao seu lado para segurar seus braços caso você tropeçasse na escuridão ou então tivesse medo demais para encarar a noite completamente sozinha. Ou então talvez você quisesse ficar em casa, com os olhos colados na parede pensando em tudo que pode acontecer à sua vida. Eu também estaria lá, porque na verdade eu sempre estive aqui por você, você sempre esteve aqui por mim, nós sempre estivemos aqui pela nossa amizade e não há nada maior que isso!
Nada mais clichê, nada mais verdadeiro.
Talvez o destino resolva brincar com as nossas caras e, um dia, resolva separar nossos caminhos. Quem sabe? Eu não sei o que faria sem você. Realmente sinto que o chão se abre sobre meus pés e nada parece certo quando penso nessa possibilidade, mas a vida tem essas pegadinhas. Você sabe disso. Se isso realmente acontecer, eu espero que você guarde todas as lembranças em uma gaveta esquecida e escondida da sua memória, para que nunca a perca. Nunca. Porque cada sorriso, cada conselho, cada lágrima, cada abraço, cada brincadeira, cada momento que passamos juntos se tornou um tesouro. Talvez o destino nos pregue uma peça no futuro, mas precisamos prometer que temos total controle das nossas memórias, porque nelas estaremos vivos eternamente. Afinal, prometemos um ao outro no alto de nossos nove anos de idade que seríamos eternos! Você se lembra?
Com muito amor e carinho,
Do seu eterno amigo
Dean
Suas mãos tremiam quando ela tornou a dobrar a carta e enfiá-la dentro do envelope. Dean, o melhor amigo que qualquer pessoa do mundo todo podia ter, escrevera-lhe uma carta antes de ir para a guerra, porém ela nunca recebera. Justamente por isso sempre achara que ele não se importara com ela quando decidiu partir e nunca mais voltar.
Ela tirou os sapatos e deitou-se vagarosamente sobre a cama feita, com o envelope apertado entre seus dedos frágeis, as mãos postas sobre o peito e algumas lágrimas teimosas presas no aro dourado dos seus óculos.
- Dean, meu querido amigo, talvez tenha chegado a hora de finalmente nos reencontrarmos...
* Pauta para o Sílaba Tônica
* Carta inspirada na música Light Outside – Wakey!Wakey!